Remuneração justa de catadores como elemento de sustentabilidade da reciclagem

No texto de abertura deste blog, falamos sobre o conceito de reciclagem ética e sustentável, destacando o papel estratégico de cada ente dessa cadeia de valor na construção de  condições que atendam a estes dois conceitos. Isso serve como um bom pano de fundo para o assunto da vez: a remuneração justa e competitiva de catadoras e catadores do nosso país como um elemento vital para a sustentabilidade e o desenvolvimento contínuo dessa cadeia. Se ainda não leu o conteúdo anterior, acesse aqui!

 

Pois bem, o ecossistema da logística reversa de resíduos pós-consumo envolve diferentes entes e personagens: empresas, poder público, cidadãos, catadoras e catadores. Acreditamos que um modelo inclusivo e sustentável depende de um arranjo institucional que considera esses diversos entes estabelecendo deveres e responsabilidades claras e encadeadas para que a prática da economia circular possa acontecer de forma sistêmica e virtuosa.

 

Aqui, não há espaço para olhares direcionados a um ou outro player. Ao contrário, é fundamental a parceria entre todos, com cada um fazendo a sua parte, comprometidos com a qualidade e um objetivo comum: a redução do impacto ambiental dos resíduos associado ao desenvolvimento social da população mais vulnerável.

 

 

Há mais de 15 anos, o Instituto Recicleiros está comprometido com essa causa, e trabalha pela conexão e integração de todos esses atores. Atualmente, o Programa Recicleiros Cidades está operando em 12 municípios em 11 estados, por meio de contratos de cooperação técnica que visam o fortalecimento das bases regulatórias e institucionais da política de coleta seletiva inclusiva e o compromisso Recicleiros e de seus parceiros investidores em prover infraestrutura e capacidade operacional para o recebimento e preparação desses materiais para reciclagem. Tudo isso por meio da capacitação intensiva e transversal de pessoas provenientes de estratos sociais de alta vulnerabilidade.

 

Todo esse esforço vai ao encontro de padrões interessantes de qualidade, não só do material em si, mas do que está por trás disso, que são as condições que originam esse material. Garantias de que existem condições operativas que conversam com padrões de qualidade, com ergonomia, saúde e segurança no ambiente de trabalho e que a remuneração desses trabalhadores atende a padrões de dignidade necessários.

 

Equilíbrio para a roda da economia circular girar e não parar

 

A demanda pelos materiais produzidos nessas operações, nas unidades de processamento, é o mais relevante fator de sustentabilidade dessas operações. A depender dos valores e condições praticadas entre organizações de catadores e compradores de material, tem-se a prosperidade ou a inviabilidade desses empreendimentos. Olhar com essa visão crítica para as condições que esses contratos e ofertas representam, é olhar para a sustentabilidade dessa cadeia.

 

Uma oferta qualificada e condizente com a realidade do país, viabiliza o ganho de escala, produtividade e qualidade, pois permite a retenção dos trabalhadores e a melhoria contínua dos processos, com especialização de mão de obra e de fluxos produtivos.

 

Uma oferta qualificada vai além, permite a vida digna dos trabalhadores que compõem esse elo da cadeia, beneficia famílias, economias locais e propicia a longevidade dos empreendimentos de catadores.

 

Hoje, os valores médios de remuneração dos catadores mostram a fragilidade desses atores da reciclagem e proporcionam uma reflexão sobre qual a capacidade produtiva que de fato está sendo estabelecida no segmento.

 

De acordo com um levantamento realizado pela Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) e pelo Instituto Pragma, com dados de 641 organizações de catadores, em 2020, foram 326,7 mil toneladas de materiais recicláveis comercializados, com produção média de 895 toneladas por dia. Tais números evidenciam a participação ativa desses integrantes na cadeia.

 

Por outro lado, quando analisamos a contrapartida que recebem, nota-se o quão desigual está hoje essa balança. Segundo o mesmo estudo da ANCAT, publicado em dezembro de 2021, a renda média mensal por catador vinculado a alguma das organizações consultadas é de R$ 1098. Ou seja, menor do que o salário mínimo, hoje fixado em R$ 1212.

 

Quando analisada por região, a região Sul lidera com renda média de R$ 1256 por catador; seguida pelo Sudeste, com R$ 1111 e Centro-Oeste: R$ 1091. As regiões Norte e Nordeste apresentam os menores salários, abaixo dos três dígitos, com R$ 975 e R$ 973, respectivamente.

 

Soma-se a isso a alta do preço dos alimentos. Por exemplo, entre janeiro a setembro, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) nos segmentos de alimentação e bebidas acumulam inflação de 9,54%. Para se ter uma ideia do que esse índice representa, trata-se da maior alta para os primeiros nove meses em 28 anos.

 

Valores tão baixos diminuem a atratividade dos postos de trabalho e incentivam o turnover, a rotatividade de pessoas nos postos, impactando diretamente na capacidade de qualificar pessoas e processos.

 

Como podemos viabilizar então esse elemento econômico tão importante para a sustentabilidade da cadeia?

 

Existem questões de estratégia de negócio que tendem a favorecer bastante a melhoria das ofertas pelos materiais recicláveis. Uma delas é a capacidade de encurtamento da cadeia, permitindo que os materiais processados pelos catadores cheguem diretamente aos recicladores, perpassando os intermediários e, com isso, capitalizando as vendas sem a dispersão de dinheiro com esses intermediários.

 

A questão não é super simples, mas tem um caminho. Negociações diretas com recicladores dependem de volumes que justifiquem fechamento de cargas em seu máximo aproveitamento e isso requer volume. Outro grande desafio é vencer a barreira do custo logístico para algumas regiões mais distantes dos pólos recicladores.

 

A solução passa (mas não se restringe) pela capacidade de se criar redes integradas de geração de recicláveis, que garantam padrão de qualidade e origem e possam integrar cargas ao longo dos trajetos logísticos, fazendo com que apesar do custo elevado de algumas regiões, menos expressivas em volume, sejam compensados por custos baixos de regiões com maior volume. 

 

No final da equação, essa composição tende a gerar um custo médio de frete viável. É exatamente o que estamos construindo aqui com o programa Recicleiros Cidades, mas queremos ir além das nossas próprias unidades de projeto. Queremos integrar iniciativas que garantam padrão de qualidade ao longo dos nossos trajetos logísticos e oferecer essas condições superiores de negociação com recicladores a um maior número de cooperativas no Brasil.

 

 

Disse antes que não se restringe a isso porque em alguns casos é necessário um rompimento com alguns conceitos impregnados na mentalidade do setor empresarial, o tal do conceito de viabilidade que muitas vezes é trazido à mesa de negociação junto a uma vontade de indexar preços com base em valores de commodities

 

Estamos falando de outra coisa aqui e não de uma escolha entre um material reciclável e uma resina virgem. Estamos falando do trabalho de recuperar resíduos do meio ambiente, da casa dos consumidores e efetivar a responsabilidade das empresas. Isso tem seu custo e deve ser analisado a partir dessa ótica.

 

Quanto maior for a eficiência das unidades de triagem - e aqui buscamos isso todos os dias -, melhor será a razão custo x benefício dessas operações. Só não podemos esperar que esses catadores e cooperativas tenham de buscar sozinhos meios para sobreviver, aquele famoso “se virem”. E, então, “se virem” para assegurar suas operações sem poder ter um sistema de combate a incêndio e/ou seguro patrimonial. Ou mesmo “se virem” para trabalhar sem parar, já que não podem pagar pela previdência ou ter pelo menos 30 dias de descanso remunerado a cada 12 trabalhados.

 

Sim, eventualmente empresas terão que assumir que o valor que chega aos catadores para uma tonelada de um determinado material não é o suficiente para o mínimo necessário para a sustentabilidade dessas operações, para a dignidade desses postos de trabalho. E aí, será fundamental sentar à mesa com os outros elos da cadeia, recicladores, convertedores e brand owners para construir uma oferta condizente, digna e sustentável.

 

Mas, e se for inviável?

 

Não existe inviabilidade quando consideramos compliance nessa equação. O que deve ser feito, tem que ser feito e de maneira ética, justa e inclusiva. Quando uma empresa diz que não pode pagar pelo custo justo e inerente de um processo que faz parte do ciclo de vida do seu produto e que não pode ser tratado como externalidade, está assumindo que o seu próprio negócio não é viável. Se não existe margem para que um determinado produto arque com seus custos inerentes, a resposta é clara: este produto não pode existir.

 

Sabemos que o retorno sustentável e digno de resíduos para a cadeia produtiva é viável. A questão aqui é sobre o compromisso do setor empresarial no cumprimento de suas obrigações. E, também, no empenho em criar alianças, articular parceiros e atuar com visão de médio e longo prazo na construção dessa cadeia, na busca conjunta pela eficiência de custos por meio do investimento estruturante qualificado, da tecnologia e da revisão de seus próprios projetos de embalagens e processos produtivos.

 

Nosso material vai além. Vai ao encontro do seu compromisso com a sustentabilidade e o impacto social para remuneração justa.

 

Queremos entregar nosso material reciclável aí na sua porta, diretamente da porta do seu consumidor, com rastreabilidade e um rastro de transformação social.

 

Mas, quais as vantagens para as empresas que firmam esse tipo de parceria com Recicleiros?

 

  • Oportunidade de criação de valor compartilhado e de inovação social, fomentando políticas públicas de coleta seletiva e reciclagem e participação direta de cooperativas;

 

  • Previsibilidade, pois garantem o fornecimento e os preços não são regulados por fatores externos como diferenças geopolíticas e oscilação do preço de commodities;

 

  • Fomentam a elevação da oferta de materiais pós-consumo, pois são provenientes de projetos de aumento dos índices de reciclagem (adicionalidade), o que representa mais estabilidade para o mercado a longo prazo, capacidade de cumprimento de acordos e pactos globais e a consequente elevação de benefícios sociais e ambientais. 

 

  • Reduz a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) e a entrada de resíduos sólidos em aterros e lixões;

 

  • Garante a segurança de abastecimento por meio de contratos firmes;

 

  • Reduz riscos para as marcas pelos atributos de garantia de origem ética e socialmente justa.

 

Estamos a todo o vapor construindo essa história. Se ela tem a ver com a filosofia da sua empresa, vamos conversar e somar esforços na construção do futuro da reciclagem sustentável no nosso país.

 

Te esperamos por aqui. Envie um e-mail para contato@recicleiros.org.br.

Reciclagem ética e inclusiva: quanto custa esse conceito?

A economia circular surge como uma resposta para as questões ambientais e sociais, tão urgentes em um país como o Brasil. Esse modelo contrapõe a economia linear, que há tempos tem se mostrado inconsistente e insustentável. Por mais que esse conceito de economia circular não seja necessariamente novo, sua aplicação ainda é incipiente no mundo, incluindo o Brasil.

 

A reciclagem é um dos elementos fundamentais para efetivação do conceito de economia circular. O desenvolvimento sustentável da reciclagem em nosso país passa por uma decisão de modelos que devem considerar a realidade brasileira, momentânea e histórica. É aí que a ideia de impacto social se conecta de maneira íntima e profunda com o conceito ambiental da reciclagem.

 

Nosso país ainda enfrenta mazelas profundas na área social, com desemprego e fome alarmantes. Figuramos entre os países com maior desigualdade social e de renda do mundo, segundo um estudo publicado no final de 2021 pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris.

 

O desemprego atinge 11,9 milhões de brasileiros, segundo o IBGE. Mais: 18,2 milhões de famílias estão em situação de extrema pobreza, sobrevivendo com renda per capta de até R$ 89 por mês, e destas, mais de 105 mil famílias são de catadores de materiais recicláveis, de acordo com o CadÚnico.

 

Historicamente a coleta de materiais recicláveis sempre foi uma atividade de acesso à economia para pessoas vulneráveis. Quando não se tem outra opção, revirar lixeiras nas ruas sempre foi uma alternativa para sobrevivência. Por isso, a catação de recicláveis se difundiu tanto entre pessoas vulneráveis. Hoje, estamos falando de cerca de 800 mil catadores no Brasil, de acordo com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. A grande maioria, ou até a quase totalidade deles, sobrevivendo em condições precárias e desumanas.

 

No entanto, a nova economia, que vem se fortalecendo em torno de agendas empresariais comprometidas com uma visão crítica sobre sua cadeia de valor, demanda um olhar mais profundo sobre essa parte da cadeia. É preciso considerar ações de recuperação de materiais pós-consumo para retornar ao ciclo produtivo em forma de novos produtos.

 

Garantia de Origem

 

A obrigatoriedade da logística reversa por parte do setor empresarial desde a publicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos em 2010, vem ampliando a demanda por reciclagem de produtos e suas embalagens. Adiciona-se a isso todo o movimento que também se fortalece por conta de agendas ESG e que aproximam cada vez mais as empresas das raízes e da totalidade de sua cadeia de valor.

 

No caso das embalagens especificamente, quando falamos de reciclagem do que é realmente pós-consumo, ou seja, o que vira resíduo em decorrência do consumo por alguém de um produto vendido no mercado nacional, há grande chance desse material ter passado pelas mãos de um catador de materiais recicláveis.

 

É aí que a questão fica delicada.

 

No Brasil, reciclamos apenas 4% dos 82,5 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos que geramos anualmente, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).

 

Estimativas sugerem que dos cerca de 1 milhão de catadores e catadoras de materiais recicláveis atuantes no país, não mais do que 30% estão organizados em associações ou cooperativas, contando com alguma estrutura de trabalho. Os outros 70% estão trabalhando nas ruas ou lixões, que é para onde vai 40% de todo o resíduo urbano coletado pelas prefeituras.

 

Seja nas ruas puxando carroças, nos lixões ou em associações e cooperativas, o que se vê é que a fotografia dessa parte da cadeia não é compatível com o que as políticas e compromissos das empresas direcionam. Falta de segurança, condições precárias de trabalho, remunerações abaixo do mínimo, muito longe do justo e vulnerabilidade. Essas são as características comuns a grande maioria dos trabalhadores pelas mãos de quem provavelmente esses materiais passaram antes de voltarem ao ciclo produtivo.

 

Logo, a rastreabilidade e a garantia de origem sustentável tornam-se prioridade para qualquer empresa que utilizará o material reciclado para compor sua próxima embalagem ou produto.

 

O futuro da reciclagem inclusiva

 

Como será a próxima fotografia dessa parte da cadeia de valor? Sem dúvida nenhuma deverá ter um aspecto diferente. Ambientes de trabalho mais organizados, mais bem equipados, saudáveis e seguros. Mais ergonomia e jornadas de trabalho mais adequadas. Mais produtividade, remunerações mais dignas e a capacidade de manter e reinvestir em seus negócios. Empresas sociais de alto impacto e alta eficiência, que possam contribuir diretamente com as metas das organizações parceiras.

 

O papel das empresas será o de co-construção desse modelo, com participação ativa na cadeia de valor dessas organizações, com contratos que possibilitem o planejamento, a previsibilidade, a qualificação dos processos e a remuneração justa dos trabalhadores. Será também o papel de focar no design sustentável de seus produtos e embalagens, incluindo matéria-prima reciclada e, com isso, demandar material pós-consumo sustentável e com garantia de origem dessas organizações.

 

Não há como deixar organizações frágeis do ponto de vista financeiro e institucional, sujeitas às oscilações de commodities na hora de comercializar seu produto. Isso é um tiro no pé do próprio setor empresarial. Trata-se de uma definição pela inclusão socioprodutiva e a mobilidade social de pessoas de todo o país. Trata-se do entendimento de que a formalização e qualificação dos processos gera custos, mas traz eficiência e valorização em escala.

 

O futuro passa pela responsabilidade compartilhada, pela formalização e qualificação da cadeia de valor dos recicláveis pós-consumo.

 

Por aqui, seguimos trabalhando na construção desse modelo, atuando desde a base de qualificação das cidades que estão recebendo esse tipo de empreendimento, passando pela qualificação dos processos produtivos desde a coleta até o embarque para a indústria recicladora, até o desenvolvimento em parceria com as marcas, de uma nova perspectiva de compromisso entre as partes que isso tudo seja sustentável e agregador de valor de maneira transversal a todo o mercado.

 

Em breve traremos novidades por aqui. Fiquem ligados.

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