Por que o atual sistema de créditos de logística reversa não é capaz de resolver a inviabilidade e precariedade da reciclagem nas cidades brasileiras?
E se eu te disser que atualmente no Brasil são raros os casos de unidades de separação de recicláveis que possuem condições adequadas para um trabalho digno, produtivo e seguro? E se eu te disser que, mesmo nesses raros casos de infraestrutura adequada, o custo de processamento de 1 quilo de material reciclável é pelo menos o dobro do valor de venda desses materiais? E, para piorar, poucas cidades brasileiras têm programas efetivos de coleta seletiva para a população, com infraestrutura e serviços adequados ao bom desempenho dos indicadores?
Essas informações expõem o buraco existente no sistema brasileiro responsável por fazer com que a reciclagem de embalagens e resíduos sólidos urbanos aconteça.
Esse buraco torna o mercado absolutamente desinteressante e faz com que nossos resultados de reciclagem sejam pífios, insuficientes ante a emergência climática que vivemos e se arrastem durante décadas, com o pouco que existe acontecendo porque pessoas à beira da miséria se propõem a fazer esse trabalho enquanto não há nada melhor pra fazer.
Desde a origem e até hoje, a reciclagem no Brasil acontece baseada nesse modelo de miséria, onde quem não tem uma alternativa melhor para viver, acaba se dedicando à realização da primeira e fundamental etapa dessa cadeia, que é a separação primária e preparação dos recicláveis para a indústria.
Sem programas efetivos de coleta seletiva, grande parte do pouco que temos de reciclagem vem de pessoas mexendo no lixo, nas ruas e nos lixões. Quando não, a outra face da moeda mostra trabalhadores desempenhando essa atividade sem infraestrutura adequada e sem material de qualidade, o que acarreta em baixa produtividade por hora trabalhada. Baixa produtividade e preços baixos criam a equação demolidora que resulta no óbvio: pouca reciclagem e alto impacto ambiental.
Imediatamente, a melhor desculpa para a situação é empurrar a culpa para o elo mais fraco, e diante desse cenário, ouvimos em coro: “catadores precisam de capacitação!” Capacitação de operadores é sim muito importante, contanto que tenhamos condições para que esses trabalhadores possam e queiram permanecer nessas operações, e, assim, possam evoluir em capacidade e qualidade.
A alternativa viável para destravar esse cenário é enxergar os gargalos do sistema e atuar sobre eles de maneira coordenada:
- Desenvolver a coleta seletiva como política pública nos municípios, para garantir que haja abastecimento qualificado e permanente das unidades de separação de recicláveis;
- Investir em infraestrutura adequada e capacitação técnica dos operadores que permita o processamento eficiente dos materiais;
- Considerar o pagamento por serviços de separação e processamento prestados como complemento ao valor de comercialização dos materiais para a viabilidade econômica dessas operações.
Pode ser triste a constatação mas é fundamental assumir que o Brasil ainda está na era do investimento estruturante para reciclagem. Não podemos basear o sistema de compliance das empresas geradoras de embalagens em uma máquina de contagem de notas fiscais de comercialização de recicláveis. Nos deixamos seduzir pela velha estratégia dos selos, que ficam lindos nas embalagens, comunicam errado com o público consumidor e atribuem regularidade àqueles que os utilizam, desconsiderando toda a problemática exposta neste texto.
Precisamos de mais capacidade instalada e de melhor qualidade, que proporcione adicionalidade (reciclar mais) com mais segurança, qualidade (reciclar melhor) e perspectiva de crescimento. A portaria do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima nº 1.250 de 13 de dezembro de 2024, traz mais luz a essa realidade, uma vez que regulamenta a Lei de Incentivo à Reciclagem e cria novas oportunidades para financiar projetos que melhorem a infraestrutura, capacitação e inovação tecnológica no setor. Isso significa mais equipamentos, redes de comercialização fortalecidas e programas de educação ambiental.
A arrumação necessária tem como elemento vital os sistemas regulatórios dos estados e da federação. É fundamental jogar luz sobre o tema, reconhecer o que está acontecendo de verdade lá no campo de batalha e criar caminhos para que as ações de compensação das empresas possam gerar mudanças estruturais necessárias e que sejam de verdade atuações circulares. Que a responsabilidade compartilhada seja cumprida integralmente em suas partes, reconhecendo a limitação da atuação de cada ator, mas exigindo a efetividade requerida na parte que lhe cabe.
Tenho chamado isso de responsabilidade compartilhada e estendida. Empresas e municípios possuem sim limitações para suas ações, por isso as etapas de responsabilidade são compartilhadas e, no âmbito da parte que lhe cabe, sua ação deve ser profunda e abranger a totalidade do encargo, indo até o resultado efetivo.
No arranjo que propomos no Programa Recicleiros Cidades e no próprio modelo de Massa Futura, cidades devem regulamentar e efetivar a coleta seletiva nos seus territórios, sendo responsáveis pelos resultados quantitativos e qualitativos dessa etapa e não somente pela disponibilização do serviço. Dessa forma, ações que apenas a municipalidade pode tomar serão levadas a cabo com foco em quantidade de massa e baixo rejeito, tais como: índice de abrangência e qualidade do serviço de coleta e obrigatoriedade do descarte seletivo por parte de moradores e estabelecimentos comerciais de todos os portes, lançando mão de fiscalização e incentivos.
Do outro lado da responsabilidade, o setor empresarial deve investir no suporte técnico ao município e na viabilização da etapa de processamento e destinação, onde deve-se observar a responsabilidade de implementar infraestrutura adequada aos princípios de trabalho digno e eficiente, além da garantia de compra por preço ético, que viabilize o custo de produção, garantido assim remunerações adequadas ao desenvolvimento virtuoso da base da cadeia da reciclagem.
O fetiche por volume de reciclagem a custos irrisórios está criando uma visão deturpada sobre os elementos necessários para a realidade do Brasil. Governos precisam estar atentos e atuar por isso com visão técnica arrojada.
Só com visão integrada e conhecimento da realidade poderemos canalizar os esforços para o que de fato pode nos levar ao ponto necessário: infraestrutura de qualidade, comprometimento da cadeia de valor e relações comerciais justas.
Esse é o futuro da reciclagem.